É hoje aceite que os evangelhos não são relatos históricos, que retratam fielmente aquilo que aconteceu. Nem era essa a sua pretensão. É por isso que encontramos tantas discrepâncias entre cada um dos evangelhos. Não se pretendia contar a realidade, pretendia-se sim, transmitir uma mensagem e recorria-se a artifícios e a tradições literárias para causar maior efeito, ou para vincular determinada ideia. Basta relembrar a simbólica de uma história como a do Dilúvio, ou da Criação. Tal e qual como, hoje, estes relatos são considerados míticos, a história da Natividade segue a mesma orientação.
O texto escrito na Antiguidade tinha um valor e um significado que hoje, num mundo dominado pela tentativa de ser fiel à verdade histórica e aos factos, torna-se difícil de entender. Na Antiguidade só uma ínfima minoria tinha acesso à escrita e o livro, ou o documento escrito, servia para perpetuar uma memória, tradição ou feitos. Servia de transmissão cultural, mas essa transmissão estava intimamente ligada a uma ideologia, seja ela real, imperial ou religiosa. Não havia História como hoje nós a entendemos. O autor Randel Helms afirma que estas narrativas tinham como principal objectivo afectar o presente e não pretendiam ser um mero relato do passado.
Crescemos a ouvir a história da Natividade de Jesus como se fosse uma história única: O anjo apareceu, disse a Maria que ela iria conceber o filho de Deus, depois Maria e José tiveram de ir a Belém, foi-lhes recusada a entrada em diversas hospedarias e foram relegados para um estábulo. Aí nasceu Jesus, rodeado de animais que o aqueceram na noite fria. Uma estrela anunciou o nascimento a três reis magos. Jesus foi adorado pelos magos, que lhe ofereceram presentes, e pelos pastores. Depois um anjo avisou José que o rei Herodes queria matar a criança. A família teve de fugir para o Egipto e só regressou depois do rei ter morrido.
A história que ouvimos contar, vezes sem conta, é o resultado da compressão de vários elementos que derivam tanto dos evangelhos, como da tradição que foi sendo construída ao longo dos séculos. Por exemplo, dizemos 3 Reis Magos, porque foram 3 os bens presenteados a Jesus. Em parte alguma há referência ao número dos magos.
A autoria dos evangelhos é desconhecida. A atribuição aos apóstolos serve para conferir autoridade sobre os outros escritos – que convém reconhecer, eram muitos. A maioria dos eruditos reconhece que o primeiro evangelho a ser escrito foi Marcos, provavelmente no ano 70 da nossa era, e que tanto Mateus como Lucas (datados dos anos 80-90 da nossa Era), usaram o relato de Marcos como fonte para as suas próprias histórias.
Dos 4 evangelhos, apenas dois mencionam o nascimento de Jesus. Marcos, por exemplo, começa o seu evangelho com a pregação de João Baptista, não há qualquer referência ao nascimento de Jesus. Segundo Pe. Carreira das Neves, é natural que numa fase em que não existia ainda a distinção entre Cristianismo e Judaísmo, as narrativas do nascimento não surjam ainda como “o fruto da fé cristã, na sua evolução de doutrina, liturgia e reflexão cristológica e teológica (…)” [2]. O evangelho segundo João é um caso à parte, mas também não há qualquer menção ao nascimento. O nascimento de Jesus não tinha importância nem para a mensagem de João, nem para Marcos, era irrelevante para aquilo que se pretendia transmitir.
É nos evangelhos de Mateus e Lucas que retiramos os elementos para história de Natal. As discrepâncias que observamos entre o Evangelho segundo S. Mateus e o Evangelho segundo S. Lucas, a falta de fundamentação histórica e os paralelos com outras tradições literárias colocam os relatos da Natividade num campo mítico.
São as semelhanças, mais do que as particularidades, que nos fornecem algumas noções do contexto em que foram escritos e também da mensagem que os autores dos Evangelhos pretendiam transmitir. Se o primeiro evangelho (dos quatro que possuímos) a ser escrito não menciona o nascimento ou a juventude de Jesus e se os dois que agora analisamos, Lucas e Mateus, dão especial relevo a essa história, só podemos supor que para os primeiros cristãos havia uma especial preocupação com as origens de Jesus.
Sabemos que Jesus surge num contexto judaico e que nos primeiros tempos não existia ainda a noção do Cristianismo – talvez a melhor maneira de descrever esta comunidade seja “Judeus seguidores de Jesus”. Em oposição, um grupo considerável de judeus recusava aceitar o papel messiânico de Jesus, não viam na figura sofredora de Jesus, o Messias político profetizado pelas escrituras.
É por isso que encontramos a genealogia de Jesus tanto no Evangelho segundo Mateus como no Evangelho segundo Lucas, embora bastante artificial e diferente entre si. A genealogia serve para fundamentar a legitimidade messiânica. Mateus situa a genealogia no início do seu livro, antes da história da Natividade, estabelece uma ligação entre Jesus e os principais depositários das promessas messiânicas – Abraão e David. Assim, é em Jesus que se encontra um sentido para a história de Israel. O evangelho de Lucas, por seu lado, insere-a depois de referir a sua filiação divina, além disso liga Jesus a Adão e não a Abraão para acentuar a sua ligação com toda a humanidade, ou seja, há um propósito visivelmente universalista. (Mt 1-16 notas; Lc 23-38 notas)
Esta linhagem, transmitida por via masculina, através de José, coloca uma questão importante na história da Natividade, pelo menos ao nosso olhar moderno. Tanto Mateus e Lucas abordam a virgindade de Maria e são os únicos evangelistas que o fazem. Mateus refere apenas que Maria, embora desposada com José, permanecia virgem e concebeu graças ao Espírito Santo; Lucas é aquele que aprofunda mais o tema ao relatar primeiro as circunstâncias especiais que rodeiam o nascimento de João Baptista, o parentesco que une Maria e Isabel (a mãe de Baptista) e a história da anunciação pelo anjo.
Mateus é claro nas razões que o levam a mencionar a virgindade da mãe de Jesus: Para cumprir as profecias, “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho”. A profecia a que Mateus se refere é Isaías 7:14 e nela lê-se “… a Jovem está grávida e vai dar à luz um filho”.
Convém recordar que nesta altura, o texto (que hoje chamamos O Antigo Testamento) que os judeus seguidores de Cristo usavam era a “Versão dos 70″ – a tradução do texto hebraico para grego feita entre o III e I a.C – A maioria dos historiadores aceita o facto que há uma série de erros de tradução nesta versão. Assim, a palavra Almah em hebraico que significa Jovem mulher, foi traduzida para grego como parthenos, virgem.
No entanto, Lucas não faz qualquer alusão aos aspectos proféticos para justificar o nascimento virgem. Randal Helms sugere duas vias de pensamento que se cruzam nesta altura: o da tradição judaica e o pensamento pagão dos gentios recém-convertidos ao Cristianismo e que dará origem a um sincretismo religioso.
No Médio Oriente Antigo, na antiga Mesopotâmia ou na Babilónia, o poder real era manifestado pela predilecção da divindade sobre o rei. A divindade titular adoptava o rei como seu filho. Este mito tem algum reflexo em determinados momentos do Antigo Testamento, “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (2 Sm, 7:14). Para os judeus, esta era uma filiação simbólica, nunca encarada como real ou física. Para Helms esta filiação nunca foi verdadeiramente compreendida pelos cristãos gentios que, vindos de um ambiente pagão, conheciam unicamente a concepção divina de heróis, em que a divindade era literalmente o pai dessa figura.
Este problema entre a ascendência por via masculina e a virgindade de Maria é ultrapassado pela adopção de Jesus por José, que sendo pai legal, o título era suficiente para conferir os direitos de herança e neste caso a linhagem de David.
Assim, podemos compreender por que razão é tão importante situar o nascimento de Jesus em Belém, a cidade ligada ao rei David, do qual José descende. Para reforçar esta ideia, Mateus aponta uma profecia “E tu, Belém, terra de Judá, (…) porque de ti vai sair o Príncipe que há-de apascentar o meu povo de Israel” O texto não corresponde exactamente à citação de Miqueias 5,1-2, que se refere à importância da cidade como berço de David e da sua dinastia. Após a morte de Jesus, os seus seguidores, ansiosos por encontrar provas do seu papel de Messias, reinterpretaram as escrituras vendo nelas sinais de profecia quando no fundo, se trata apenas de um louvor a um facto passado.
É aqui que os dois evangelistas recorrem a artifícios diferentes e independentes para justificar o nascimento de Jesus em Belém, quando era do conhecimento geral que Jesus vinha da pequena cidade de Nazaré.
No Evangelho segundo Mateus, José e Maria viviam em Belém quando Jesus nasceu. Não existe qualquer menção do estábulo ou da recusa da hospedaria. Mateus situa cronologicamente o nascimento de Jesus no tempo de Herodes, o Grande, que vivia em Jerusalém. É a esta cidade que chegam os Magos do Oriente, que vendo uma estrela no céu, sabem que o Messias hebraico nascera. De acordo com as profecias, a cidade onde esse Messias iria nascer seria Belém. É nessa cidade que os Magos encontram Jesus, recém-nascido na casa onde Maria e José habitavam.
Podemos estar perante outro caso de sincretismo entre tradições judaicas e pagãs. O sinal nos céus aquando do nascimento de Jesus tem paralelos com outros nascimentos na Antiguidade. Era algo recorrente na mitologia associada ao nascimento de heróis ou na propaganda real: Uma tradição judaica atribui um sinal no céu aquando do nascimento de Abraão; Quando Alexandre, o Grande nasceu, também houve uma estrela que foi observada nos céus pelos astrólogos. É um sinal que anuncia o nascimento de um herói, um homem capaz de alterar o curso da humanidade.
A homenagem prestada pelos magos – é aceite que a melhor tradução para a palavra original é astrólogos – também é observada por outros autores da Antiguidade para diferentes personagens históricas: Plínio menciona a homenagem de astrólogos feita perante Nero, também Suetónio faz referência a um astrólogo que proclama que o Senhor do mundo nasceu aquando do nascimento de Octávio.
Os magos oferecem ao menino, ouro, incenso e mirra, produtos ligados tradicionalmente à Arábia, estes bens significavam as dádivas de todos os povos ao Messias esperado. Através de sonhos os Magos são avisados para não regressarem por Jerusalém, pois Herodes, perturbado com tal notícia, pretendia, não prestar homenagem ao futuro Messias, mas sim matá-lo, já que representava uma ameaça ao seu papel de rei. Em sonhos, José é avisado para fugir com o menino para o Egipto, onde permaneceram até à morte de Herodes. Alguns anos depois, novamente um anjo diz a José que pode regressar à terra de Israel, mas José, com receio do sucessor de Herodes, retirou-se para Nazaré, cumprindo outra profecia: “Ele será chamado Nazareno”.
Desconhece-se a profecia a que Mateus se refere. Deste relato, Mateus salta para a pregação de João Baptista.
Não existe qualquer referência histórica ao martírio dos inocentes. Sendo um acontecimento tão cruel seria de supor que houvesse referência noutros escritos da época, ou pelo menos nos próprios evangelhos. É naturalmente uma história simbólica. Este tipo narrativa é comum na Antiguidade e na mitologia, mas é mais óbvio o paralelo com a história de Moisés. O uso do Egipto, como local de refúgio é também recorrente no Antigo Testamento.
Lucas recorre a outro artifício para justificar o nascimento em Belém. Refere que Maria e José viviam em Nazaré e estando Maria grávida, sai um édito que obriga toda a população a deslocar-se à cidade ancestral da sua casa ou linhagem para um recenseamento. Assim, Maria e José são obrigados a deslocarem-se a Belém, pois José pertencia à casa de David.
Lucas é específico em situar cronologicamente tanto o nascimento de Jesus – “No tempo de Herodes” (Lc 1:5) – como o censo – “Foi o primeiro que se fez sendo Quirino governador da Síria.” (Lc, 2:1-2). Sabemos, pelas fontes históricas, que realmente o único censo conduzido enquanto Quirino era governador ocorreu por volta do ano 6 d.C., ou seja 10 anos após a morte de Herodes e abrangeu Judá e não a Galileia. Trata-se de uma preocupação de atribuir um sentido cronológico e histórico, mas não deixa de evidenciar a efabulação da narrativa. É de estranhar, igualmente, que o aparelho burocrático romano exigisse a deslocação de milhares de pessoas às suas aldeias ancestrais.
Nesse entretanto, já em Belém, Maria dá à luz e repousa o filho numa manjedoura por não haver lugar na Hospedaria. Um anjo apareceu a um grupo de pastores que pernoitavam nos campos da região e avisou-os de que o salvador, o Messias do Senhor tinha nascido.
A tradição da gruta onde Jesus terá nascido é tardia e data sensivelmente do Século II d. C. Helms avança com uma leitura simbólica para a manjedoura, indicando que Lucas pretendia estabelecer uma ligação entre Isaías 1:3 e a vida de Jesus:”O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor, mas Israel, meu povo, nada entende.” Assim, nessa leitura, Belém não tinha lugar para o seu salvador e Israel não o reconhecia. E nesta linha de pensamento, a homenagem feita pelos pastores faz todo o sentido. Os pastores, por serem um grupo à margem da prática religiosa, por serem pobres, eram mal vistos por Israel. Estamos longe, portanto, da mensagem de glória pretendida por Mateus.
Não há qualquer drama no Evangelho de Lucas para fazer regressar a família a Nazaré. Após 8 dias e depois da circunsição, Maria, José e Jesus abandonam Belém e chegam a Jerusalém onde apresentam a criança, conforme estava escrito na Lei. Depois de terem cumprido tudo o que a Lei determinava, regressaram à Galileia, à sua cidade de Nazaré.
Bibliografia e notas
Helmes, Randal, The Gospel fictions, New York, Prometheus books, 1988
Carreira das Neves, O que é a Bíblia, Alfragide, Casa das Letras, 2008
Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, Franciscanos Capuchinhos
AAVV, A Bíblia, Lisboa, Edições 70, 2006
Publicado também em Portal Ateu