Uma ponte entre colinas

A relação entre as colinas do Príncipe Real e do Campo Santana, ou entre a Ciência e a Saúde, reflecte a história urbana de Lisboa e o papel dos engenheiros das escolas Politécnica e do Exército.

Em 1906 Fialho de Almeida publicou uma série de artigos na Ilustração Portuguesasob o título “Lisboa Monumental” com várias propostas  urbanísticas para a cidade de Lisboa. Entre elas, constava uma ponte que se ergueria a 80m do solo e faria a ligação entre S. Pedro de Alcântara à colina de Santana e, por fim, à Graça. O trecho inicial desta ponte imaginária tem fornecido a metáfora ideal para a História da Ciência, Tecnologia e Medicina (HCTM), ligando dois pólos importantes: o Alto da Cotovia (actual Príncipe Real) como colina da Ciência e o Campo Santana como colina da Saúde.  

Ponte Lisboa Monumental, Ilustração Portuguesa 1906

Esta relação, explorada na obra Capital Científica (2019), reforça aquilo que tem sido a orientação da História da Ciência das últimas décadas: para compreender a ciência não basta conhecer as teorias científicas, os cientistas, as grandes descobertas, os resultados ou os métodos. O campo de investigação tem sido alargado à prática científica, aos locais de produção de conhecimento, aos contextos políticos, sociais e económicos que promoveram ou facilitaram essas práticas, às ideologias dos seus principais actores e os cruzamentos que derivam destas diferentes vertentes. 

Com este âmbito alargado, a história da cidade, o desenvolvimento urbano e a criação das suas instituições, ganham novos sentidos. Assim, a criação das escolas Politécnica e do Exército em 1837, com a matemática e as ciências integrando uma parte substancial dos seus currículos, contribuiu para a emergência de uma classe profissional com grande influência política, os engenheiros. Serão estes que, com o apoio de Fontes Pereira de Melo, se tornaram o motor para as grandes obras públicas de melhoramento do país durante o período da Regeneração.

Para além do peso da matemática no currículo destes cursos, os alunos eram também introduzidos à Economia, aprendendo o funcionamento da economia capitalista e os conceitos como capital, terra, crédito, juros e rendas. Muitos destes técnicos, altamente qualificados, alcançaram posições importantes nas empresas públicas e privadas e também no governo. Durante o período da Regeneração, cerca de 40% dos deputados e 48,6% dos ministros responsáveis pelas pastas da Fazenda e Obras Públicas tinham estudado nas escolas técnicas do país. 

O impacto das escolas Politécnica e do Exército fez-se sentir também nos bairros que acolheram estas instituições, fazendo a ligação entre a Ciência e a História urbana.

Até 1861 o local que viria a ser o Jardim do Príncipe Real permanecia atulhado dos alicerces do Erário Régio e funcionava como um vazadouro público. A vizinhança com o Bairro Alto, com as tabernas e prostitutas, aumentava também a sensação de insegurança. Dos vários projectos para solucionar o problema, a construção de um jardim público ganhou consenso, pela “influência civilizadora exercida pela natureza domesticada” (Marta Macedo, 2019). A iniciativa da sua execução partiu do professor de Economia da Escola Politécnica.

O jardim transformou a área circundante, aumentou o valor dos terrenos e transformou a zona num dos bairros mais prestigiados. Em seu redor, a elite mercantil e financeira instalou-se em palacetes, a sua maioria construídos entre 1860 e 1870.

Algo semelhante ocorre igualmente no Campo Santana, após a instalação da Escola do Exército no Palácio da Bemposta em 1850. Após a transferência da Feira da Ladra para o Campo de Santa Clara e a demolição da Praça de Touros, a construção de um jardim público e a instalação da Escola Médico-Cirúrgica e do Instituto Câmara Pestana transformou o local na Colina da Saúde. Junto ao Jardim do Torel ergueram-se vários palacetes de capitalistas importantes.

As preocupações urbanas dos alunos formados nas escolas politécnicas reflecte-se também nas visões utópicas em torno da cidade. O já referido Fialho de Almeida, ele próprio formado (embora em medicina) na escola Politécnica de Lisboa, com a sua “Lisboa Monumental”. No mesmo ano, José Maria Mello de Matos, formado na Escola Politécnica do Porto, publica Lisboa no ano 2000.

O papel dos engenheiros das escolas Politécnica e do Exército na história e evolução urbana da cidade de Lisboa é um dos temas que será abordado na visita Lisboa científica no próximo dia 20 de Março às 14h30.


Referências: Capital Científica. Práticas da Ciência em Lisboa e a História contemporânea de Portugal, coord. Tiago Saraiva e Marta Macedo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais 2019

Artigo publicado em simultâneo na História LX